segunda-feira, 12 de novembro de 2007

A Cidade Sol



Esta é a "Cidade Sol". Menos parecida com uma cidade ou um bairro, este é um logadouro em Porto Príncipe, Haiti. É o lugar mais insalubre, violento e inóspito daquele país, tão importante para o mundo quando da Revolução Haitiana. Muitos associam a pobreza com a violência. É assim em Mogadicho na Somália, Bronx em Nova York (EUA), La Boca na Argentina, Complexo do Alemão no Rio de Janeiro. É assim na Cidade Sol. Será que existe mesmo uma relação causal entre pobreza e violência?

O Pescoço

Era tarde de sexta, ou talvez quinta, fim de semana. Na sala, eu esperava o médico. Jaziam também outras duas mulheres, nem tão senhoras hoje em dia. Quente dia, era verão no Rio de Janeiro, ainda mais janeiro. Folheava revistas de notícias passadas, de análises passadas, de calúnias passadas, enquanto em minha frente quedavam as duas em seus sonhos, cada qual contando seus devaneios. Cerrei as revistas. Queria prestar mais atenção naquelas duas figuras empanadas, desgastadas pelos correntes cortes de bisturi. Fingindo pensativo ou olhar outras figuras na parede, pinturas estas, fiz meus ouvidos concentrados na conversa alheia. Casa, carro, férias, novela, atriz, ator, viagem, marido, filha, cabelo, unha, pêlo, eram o que chateavam, espaçadamente, uma a outra, como num computador, em que o único som é o das teclas a quebrar o pensamento. Algo me intrigava naquelas duas senhoras quase fabricadas. Achei que fosse o pescoço que lhes entregavam a idade. Infelizmente os doutores não inventaram ainda uma plástica para esconder as rugas do pescoço. Mas hão de inventar, pensavam sim aquelas duas, uma reparando no gogó da outra. E o médico? Era ótimo o dr. Estevão Lucarelli. Litros me injetou e meus seios ficaram mais em pé. Outros foram os elogios ao trabalho do douto. Cruzavam-se pernas para dar mostra ao vestuário uma a outra. Esta saia vermelha é muito linda. Não imagina quanto foi. Da vestimenta passaram ao cartão de crédito que tinham, repetindo e mostrando o seu sem dar conta de quão costumeiro tinha se tornado que nem sabiam o que queria dizer a palavra crédito, do cartão foram ao marido e do marido à impotência. Nesta parte algo me entreteu que não pude escutar direito o que falavam. Remédios já tentei, mesmo assim fica aquilo o dia inteiro deitado na cama vendo jogo de futebol. Sai à noite para o bar e só volta bêbado. Não agüento mais aquele bafo de cachaça. Fiquei sem saber de quem era a impotência. Se era a impotência sexual propriamente dita, aquela que necessita droga, ou a impotência de conseguir que o marido achasse graça nela. Na dúvida me satisfiz com a primeira. Passava da conversa para a confissão, e da confissão para a reclamação. Não sei o que eu faço mais da minha vida, além das minhas enxaquecas que não me deixam, estou devendo um dinheiro para o banco. Querelas financeiras passou a narrar. E o relógio já marcava três horas da tarde. Olhei o calendário, era realmente sexta. A porta se abriu e lá saiu o nosso médico, sempre feliz. É a sua vez dona Felizberta. Ao se levantar descobri o que tanto me preocupava naquela figura, o pescoço, era realmente ele. Enrugado, não se conseguia escondê-lo. Parecia uma máscara seu rosto, como se querendo esconder algo que logo lhe mostrava o pescoço. Fechada a porta, estive em meus pensamentos tentando entender tanta ambigüidade que me mostrava tal parte do corpo. Mas me perdi em outras coisas, como o futebol. Jaziam eu e a outra mulher somente no consultório psiquiátrico de meu amigo Dr. Júnior.