terça-feira, 29 de novembro de 2011

Despedaço

Desperdício.
Se visse o quanto azul existe por aqui entenderia. Se viesse. Entenderia o que quis dizer que o mar é tão imenso quanto aquilo que ofereço. Se viesse e visse como mar e céu são indistinguíveis, entenderia que o que me propõe é apenas uma parte da metade azul, ou mar ou céu.
Desperdício, despedaço.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Adotar estrelas órfãs

Foi pela primeira vez que vi uma estrela cadente. A cadência do riscar o céu me felicitou tanto, que prometi a mim mesmo, sempre que possível lançar a linha para pescá-las em lagoa azul-celeste. O tempo passou, mas minha infância continuou na minha alma, a dizer que na verdade eu era um reciclador de estrelas desprendidas. Todos tentaram me dissuadir: isso era coisa de criança pequena, de travesseiro enfeitiçado, que cria histórias de esperanças. Não são para adultos sisudos, sérios em seus dizeres, ásperos em seu sonhos. Engravatei-me e nunca mais olhei para o céu. Até encontrar a mulher que me fez criança novamente: teríamos que destelhar nossa casa para passar nossas noites adotando estrelas órfãs. Seus pais desfaleceram. Das suas janelas só  podem ver a rua.

domingo, 27 de novembro de 2011

Erva-daninha

Desabrigaram-me, hoje. Não foi ninguém bater à porta, não foi nenhuma letra em carta, não foi nenhum mandato, foi uma pedra. Foi uma pedra que me desabrigou, na verdade, várias delas pontiagudas. Disse Drummond que tinha uma pedra no caminho, mas era em minha cama onde fizeram parada todas as pedras de todos os caminhos. Dormia coberto pela ponte, encoberto pela lua, descoberto de nenhuma atenção. Não me reclamo a mim que só tenho. De semelhança com Jesus, apenas uma: também nasci de mãe e pai virgens. Cresci porque me plantaram em um desses gramados da cidade. Erva-daninha, me chamariam se possível os biólogos e agricultores, e não desacredito que fosse feito um agrotóxico para que não mais apareça a sujar lindos blocos de concretos cor-fumaça de tanta serventia para a humanidade.

sábado, 26 de novembro de 2011

Pedreiro

Graças a Deus, nunca fui bom em nada. Pelo menos, posso continuar acreditando que um dia serei. De certa forma, me sinto cada vez mais feliz quando alguém me diz que fiz algo de forma muito errada. Vejo a vida como um pedreiro sempre a levantar edifícios, e mesmo que todos passem e digam que são inacabadas moradas, vejo-as com obras de minhas mãos, imperfeitas como elas. Imagino como deve ser frustrante para alguém saber que sempre faz tudo de modo perfeito.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

O mundo vai acabar em cimento

Que tanto te assustas, pequena pomba? A civilização, o progresso? O cigarro, as batatas engordurando o chão? O fingimento da cidade, a corrida ao nenhum-lugar? A felicidade fraudada, riso sem sol? O asfalto nublado, a temperatura vulcânica? É eu também penso em desistir, você está certa, o mundo vai acabar em cimento.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Xaxá, dadá ou alafim

Sentou-se na cadeira, sendo o mais correto nesse caso, que a cadeira o adornava, tal qual um príncipe africano, xaxá, dadá ou alafim de Daomé e Oió. Agora sim, à mesa um computador, ao pulso um relógio, o qual poderia trespassar o olho em ensaiada coreografia, a dizer, não há tempo, porque os que se emparedam em mesas sentem o tempo lhes pertencerem. Sempre fora o melhor entre os melhores, tinha provas disso, troféus não faltavam no seu quarto de empregada. Guardara-os todos sem poder mostrá-los, em festa inédita todos desapareceram. Agora sim, poderia mostrá-los, qualquer coisa era questão de empinar palavra, afinal não tinha sido o melhor entre os melhores à toa, não desprezara os infelizes desconcorrentes à toa, não gastara dias e noites a estudar à toa, não procurava a atenção materna à toa, apesar de nunca ter conseguido. Agora sim, todos os orgulhos estavam para ele, todos os tratariam com a devida deferência de subordinados, o beija-mão era seu melhor ritual. Agora senhor de si e de outros, cativava mais a si, nem tanto outros. 

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Copos de leite

Queria ser poeta, dizia que os copos de leite ainda não estavam derramados. Papai disse que iria desremunerar. Fardou-se então de terno e gravata. Ainda me lembro: foi ganhar a vida, como vencedores houvesse.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Um dia?

Quê? Um dia para relembrar Cartola, Luiz Gama, Machado de Assis, Pixinguinha, Ganga Zumba, Zumbi dos Palmares, João Cândido, Edson Carneiro, Antonieta de Barros, Eugênia Anna Santos, Pelé, Gilberto Gil, Milton Gonçalves, Ivone Lara, Grande Otelo, Manoel Congo, Chiquinha Gonzaga? Um dia para relembrar os estrangeiros, Martin Luther King, Nelson Mandela, Bob Marley, Michael Jackson, Morgan Freeman, Barack Hussein Obama, Harriet Jacobs, Frederick Douglass? Um dia para relembrar aqueles que não podem ser lembrados, seus pés negros, ressecados de mais de quinhentos anos de lavoura e chicotes no Brasil, no Caribe, nos Estados Unidos, na Europa, nas Áfricas? Nem se eu tivesse mais quinhentos anos, eu seria capaz de reverenciar todos esses seres humanos que construíram e continuam a construir suas vidas apesar de ouvirem a cada dia que não são capazes de viverem-nas, que o sistema os coisificam.

A tv

Na tv de consultório parece haver filmes que só nela estão. A tv está cansada. Cansou-se das revistas e seus chiados enjoados à mão sempre de (im)pacientes apáticos, sentados, apoltronados apesar. Olhos para ela são mais de pena do que de interesse, olhos escolares talvez. Não os culpa, a espera é a mais dolorosa das sensações humanas em tempos em que os ponteiros imperializam o dia-a-dia, a noite-a-noite. Enfadou-se também dos toques dos teléfonos, móveis e imóveis, hoje os telefones não são mais donas-de-casa, são sem-tetos, não mais moram, desabrigaram-se. Não sou eu que enlouqueço aqui consultando, é a tv. Os outros saem, ela cativa. Ressente-se de ser a única prisioneira sem crimes, sem direitos e sem banhos de sol. É a única sem visita de mãe, de mãe de bandido, que mais que mulher, possui todas as esperanças dos mundos. O pior é ainda ser acusada de destruir vida de famílias. Não somos nós a destruí-la? Ninguém a pergunta se se satisfaz ser grávida de fetos mortos, que ao mesmo tempo em que a aviva de maternidade, amorta de ser campa última de entreter frivolidades. Uma vez, vai fechar-se, enegrecer-se, quando alcançará liberdades. Como poucos tem sentimentos com idosos aparelhos, e ela de disso sabe muito bem, encontrar-se-á numa contraditoriedade: será preciso fingir-se morta, para reviver em seus próprios sonhos, e não mais passar sonhos d'outros. Far-se-á morta, por mais que desfibrilassem-na, colocando-a e retirando-a da eletricidade. 
Saí, consultoriado estava. De ouvidos limpos do lava-jato de ouvidos, conhecido por otorrinolaringologista, mas fiz ouvidos moucos para os sonhos daquela escrava. Pouco tempo depois a encontrei, mendinga, meio desligada, a desfrutar de uma árvore de calçada. Criou raízes, humanizou-se, queria agora ser frutífera. 

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Sou Fausto, Asfalto

Faço asfalto. Falso asfalto. Asfaltaria até os mais livres sonhos. Afastaria até os mais livres sonhos. Acimento pensamentos; a(s) faltar vida, desverdejo o ambiente em meio, em meio-ambiente apenas. Pavimento sofrimentos; a(s) faltar vida, acinzeiro paisagens virgens, a cal-e-sal para nenhum florescer. A cidade, apesar. A cidade a pesar. Sou Fausto, sou asfalto.

Te caguei, estátua bela?

Te caguei, estátua bela? Desculpa-me. Peraí, desculpa o caramba. Que você tá fazendo aí, sua porcaria branca, minha bosta é mais colorida que você sua imprestável. Não tá vendo que ninguém aqui liga pra nós, e você aí, com esta cara de bosta, crente de que alguém vai te perceber. Isso aqui costumava ser minha morada, por isso não tenho que te pedir desculpas por andar a defecar, porque isso aqui era mato, mato, mato se vier de gracinha, caguei mesmo, porque você simboliza tudo o que eu desprezo. A civilização, a estética, a brancura, a palidez, cansei de lançar merda naqueles que você copia. Agora também vou aqui fazer minha privada. 

É com poemas sujos que limpo minha alma

É bonito? Grande merda. Fala inglês? Fuck you. Passou em Medicina? Dane-se. Tá malhando? foda-se. Perdeu peso? Idiota. Fez mestrado? Bosta. Doutourou-se? Grandíssima Bosta. Comprou Carro Novo? Vai se ferrar. Tá ganhando dinheiro? Prostituta. Viajou para o exterior? Devia ter ficado por lá. É só isso que fez? Nem acabei meus palavrões. Não gostou do poema? Junta tudo isso e vai pros Quintos e Quintas do Inferno!

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Amores

Gosto de falar de amores. Isso, amores. Nessa religião só existe a possibilidade de ser politeísta. Os monoteístas é que são os hereges, principalmente se esse amor for apenas-amor-próprio. Condenações às fogueiras não há e nem houve. Nessa religião os hereges são desprezados, por incapacidade de sorrir. Não há catequese, porque se não aprenderam que foram gênesis de dois amores, no mínimo, amores de pai e amores de mãe, não há palavra sagrada ou versículos capazes de convertê-los. A ninguém, e ao mesmo tempo, a todos é permitido falar deles, quando o máximo que se pedem os deuses é que pratiquem-nos. Sacrifícios são muitos, e essa talvez seja a única semelhança com o monoteísmo cristão: só com muita abnegação e martírios se pode chegar aos amores.

Pétalas

Pétalas continuam nascendo, se arriscando mesmo em meio aos entulhos cinzentos. Por que não?

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Subviver

Pra onde queu vou? Essa pergunta não parava de pipocar em minha cabeça. Quando perguntei ao senhor que veio me despir de minha morada qual teria sido meu pecado, apenas disse que são coisas do mercado. Que mercado perguntei, Mercado imobiliário, respondeu. Imóvel eu que fiquei. As pessoas sempre arrumam desculpas para suas próprias ganâncias, culpabiliza algo invisível, que nunca existiu, a não ser na mente infértil e estéril de economistas, verdadeiros advogados de impecáveis avarentos. A vida anda muito difícil minha senhora, aprumou-se o senhor, não há espaço mais para ninguém. Seria verdade se fossemos olhar para aquilo que tinha sido meu último abrigo: empuleiravam-se tantos que não dava mais para sobreviver, lá era subviver. Engraçado, espaço há. Vejo tantos lugares abandonados, ventre a chamar filhos imaturos que nunca chegam, infelizes são, toda morada precisa de família para se tornar morada. Vovó não tinha essa preocupação, botava ninho em cada árvore centenária, cintura larga, galhos fortes. Agora vem o desmatamento, florestas não mais existem. Sobrados, são as superlotadas árvores de enfeite, entre o asfalto das cidades. Alguns amigos se arriscam em árvores de natal, não tenho coragem de viver em lugar contado para desmoronar. Meus filhos merecem algo melhor. Pra onde queu vôo? Pus a me perguntar. Resolvida, mãe-solteira, decidi ocupar os espaços que os sem-asas nos roubaram. Resolvida, apenas com meus bicos subi muros entre fios, e lá deixei meus três filhotes. Já não tenho mais vontade de voar, me encerro aqui, quem sabe Deus não se arrependa de ter criado Adão e Eva, e sorrateiramente, ter lhes dado o fruto proibido, e coloque uma mãe mais carinhosa para cuidar de meus passarinhos. Que a alma  tenha piedade de três pequenos pássaros, que culpa nenhuma tem com o que o homem faz. Eu, mãe-solteira, tive forças até os ovos de mim partirem, agora eu deixo o mundo um pouco menos povoado, assim quem sabe algum de meus filhos possam tentar aqui subviver.

Venda de mulheres

Existem dois tipos de mulheres que se vendem por dinheiro. Uma o faz por necessidade, entrega-se a amores que não são seus, muitas vezes para sustento próprio, muitas vezes para sustento de seus. Outra também o faz por necessidade. Necessidade de se mostrar superior a outras ao entrar em carros novos, a procura de vida futura mais abastada. Esta não busca senão sua satisfação própria, entrega-se ao seu próprio amor, para sustentar o rei que possui na barriga. 
Infelizmente, é a primeira que sofre preconceito.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Palavra-mágica

Nasci tendo duas línguas. Duas cabeças de um mesmo dragão, eram línguas irmãs, por isso não se davam uma com a outra, ainda mais gêmeas univitelinos, compartilhavam do mesmo tempo com visões, nesse caso, falas diferentes. Não sabem todos, porque me condenariam à forca. Sou bem atento às trocas de falas, quando uma ou outra deve dançarilhar no palco de minha boca. Uma mais doce, utilizo para conversar comigo mesmo, numa espécie de tentativa de me convencer que há o que sorrir. Outra mais amarga, utilizo baixinha para responder aos meus senhores, ruminando resmungos e resmundos de ordens dadas, como o vento que insiste em ser muro quando fujo. Cada uma delas aprendeu seu próprio idioma, a doce, de meus pais, a amarga, de meus senhores. Só se juntam para dizer uma palavra-mágica que desfaz as ameaças do feitor: yes. Consigo assim mais sossego, mesmo acatando ordens. 

Deixe a porta aberta


Deixe a porta aberta. A porta aberta para o amor. Aberta para o amor passear. Para o amor passear não se desespere. O amor passear, não se desespere se ele passar. Não se desespere se ele passar, ele vai voltar. Ele vai voltar, deixe. Vai voltar, deixe a porta aberta.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Gari de mim mesmo

Gari de mim mesmo, não me perguntem do passado desfalecido. Reciclo-me a cada instante, ao mesmo tempo em que limpo e sujo permaneço sempre.

sábado, 5 de novembro de 2011

Amurados

Amor? Amor se escreve em muros, mesmo que abandonados sejam, muros ou amores.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Involução das espécies

Pensaram que não precisavam mais de janelas, queriam mais ver-se a si próprios. Seus auto-amores chegaram a tal ponto que não sentiam mais nada por outros. Vivendo em cidades sonâmbulas, satisfaziam-se nos seus amores hermafroditas. Multiplicai-vos, era a parte bíblica mais destacada dessa comunidade de uma só pessoa e de tantas cópias. Alguns chegaram a comparar estas espécies de seres humanos com o heterototalismo, provavelmente uma involução pela primeira vez vista em mamíferos com razoável capacidade de racionalismo. The way of life em que tais pessoas estavam inseridas, seu meio ambiente, provavelmente tenha muito a ver com essa regressão da escala evolutiva. Forçadas ao hedonismo desde crianças, jovens cresceram e adultos tornaram-se cada vez felinos a laberem a si próprios, menos pela higiene, mais pelo campo competitivo, onde a afetividade era disputada cada vez com maior furor. Tudo isso, comprovam algumas pesquisas, começou com o coronel norte-americano Paul Tibbets Jr. no dia 6 de agosto de 1945, quando confirmara aos altos escalões do exército aliado de que a arma de maior destruição que o homem já construíra seria carregado no ventre de sua mãe, dona Enola Gay, o nome de sua aeronave. Esse foi o ponto fulcral para o surgimento de seres desumanizados, desafetivos, hedonistas, da involution of the species.

Hotéis de corais

Saudades de pessoas como você são barcos náufragos que se recusam a descer ao descanso do fundo do mar, barcos hotéis de corais. Encalhado à praia, jubarte, sigo a construir ruínas, meus castelos de areia e de mar. Meus castelos de cartas marcadas, que o vento leva num assoprar. Sigo a me perguntar se foi culpa do cheiro da chuva, a desesperança que se fez ancorada em meu coração.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Cativeiro

Entrei no shopping. Por um instante entendi que eu também estava à venda. A vista tamborilou, dançaram-se suas cores. Foi assim que me tornei cativo, não na África.