segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Aos da janela

E você achando que as minhas opções eram muitas. Entre o ronco da barriga e o sol bravio não existem tantas opções. Aos que da janela observam a chuva cair, não imaginam como ela pode amolecer pedras e rochas. Não me uso como exemplo, minha vida não é para essa serventia. Não gosto de ser visto como primeiro degrau da degradação humana, por isso a minha voz só é ouvida dentro de mim. De fora sou no máximo silêncio de matagal, se som produz é para lembrar da mudez. Talvez é que mais aprendi dentro de uma mina de carvão. Apesar de em vários momentos acreditar que a fé se enterrava a cada golpe de fumaça negra, também sabia que era abaixo da terra, encubadora de sementes, que buscava minha salvação. Não me faz graça contar sobre o único trabalho disponível a mim naqueles tempos, mas só depois descobri que havia tornado-me escravo. O trabalho de certa forma era involuntário e forçado: apesar de meu corpo transitar negro, nunca me percebi cativo. Isso só aconteceu quando meus pés fugiram. Não suportaram sustentar a dor de um corpo renegado. Não só fugi da mina, fugi de mim mesmo e busquei abrigo no Rio de Janeiro. Mas, com licença, desço aqui. 

sábado, 29 de outubro de 2011

Racismo

Posso lhe perguntar uma coisa professor? Perguntou algum aluno, sabendo que já havia perguntado, por isso o mais lógico seria fazer outra pergunta que não a primeira. Diante da concessão do professor, interrogou-se e aos presentes: por que não se pode acusar um negro de racismo contra um branco? Sem jeito ficou o ditador daquela sala. Ele não havia se preparado para aquele questionamento. Suas aulas eram meticulosamente pensadas, decoradas alguns diriam, e não fazia parte de seus pontos esclarecer aquela questão. Fora treinado apenas para culpar os outros do racismo existente e ao mesmo tempo inexistente, ouvido e ao mesmo tempo sentido, gesticulado mas muitas vezes polissêmico. O silêncio tomou conta de repente de toda aquela jaula, aqueles quadrados fechados, aquelas mesas retangularmente pensadas para dar poder a uma só pessoa: a única que se encontra em contracorrente, a única que despreza o quadro negro e o giz branco. Nunca ouviu-se um silêncio tão alto como aquele, petrificando os corpos do senhor das palavras e dos escravos das falas. Durante muito tempo ficaram assim, num jogo de estátua, até que as cordas vocais pudessem novamente, agora lubrificadas, produzir o seguinte som: "os brancos nunca sentiram o medo de serem vendidos, separados de suas famílias, amigos, parentes. Os brancos nunca tiveram medo de verem seus sonhos mais banais acabarem depois serem vendidos. Os brancos nunca perderam seu orgulho dentro mesmo de sua família, ao ver sua mulher sendo abusada por aqueles que diziam donos dela, ou mesmo de ver seus filhos vendidos como mercadoria. Os brancos nunca tiveram que lutar para que tudo isso e muito mais terminasse. E mais importante, os brancos nunca no seu íntimo tiveram que juntar forças para não se sentiram menores quando 500 anos de história do Brasil é recontada".

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Igualdade

O ponto em que chegamos, que não é o final, é de só nos igualarmos na morte. Quando o coveiro nos diz, é a hora, e nos vai enterrar, essa é a hora da tão chamada igualdade. É ali, quando somos plantados, quando adubaremos a terra, é que nada da tua insignificante vida vai valer de alguma coisa: inglês, viagens, cabelos, peso, altura, cor, carro, casa, sexo, idade, conta, cartão de crédito... A morte é tão igualitária que nem faz questão de separar bons de maus, assassinos de assassinados, mães de filhos. É nessa exata hora que você se pergunta qual sentido da vida. Mas voltamos a mesma rotina, as mesmas tentativas de nos mostrar superior. Nessa hora que o homo-sapiens vê o quanto perdeu por deixar sua memória tão pequena. Eu sei que isso tudo já foi dito por várias pessoas, mas fica a tentativa desesperada de dizer que não somos nem seremos nada, absolutamente nada, por mais cedro e coroa tivermos. Eu sei que não vai valer de nada isso, inclusive para mim mesmo.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Voe

Eu sei que você não vai ler essa mensagem. Mas que Deus te receba com festa, porque é o que eu vou carregar dentro de mim: seu sorriso. Ele terá a sorte de tê-la por perto, e eu me conformo com a lembrança de sua voz a cantar Ícaro voou para se libertar... hoje foi você minha querida, voe... se liberte.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Vitrine

Eu estava numa loja de relojos. Buscava algo para consumir, algo para explicar essa nossa vida. Eu estava num shopping. Buscava um lugar para ver pessoas. De repente, ouço gritos. Eram crianças, todas pretas, todas pobres, todas de cabelo crespo. Estavam sendo carregadas pelos seguranças. Eram indesejadas ali. Me senti sendo também carregado. Os gritos eram para dizer que eram humanas também aquelas crianças sujas. Me senti sujo também, uma espécie de graxa que não sai por mais que se esfregue. Tinha a vontade de gritar, de perguntar se eu era também malquisto por todos aqueles que se enojavam com aquelas crianças. Não fiz. Passei meu cartão de crédito, saí da loja, e finalmente entendi porque todas as lojas têm vitrines.

Capaz

Ainda bem que não sou um pássaro, um passarinho, capaz seria eu de pensar que não existiria vida inteligente ao solo; capaz seria eu de pensar que somente na república do céu existiria liberdade.

sábado, 22 de outubro de 2011

Pares de manequins

Como representação de homossexuais covardemente assassinados, em todas as cidades surgiram pares de manequins sem cabeças ligados uns aos outros para demonstrar a todos que o amor não foi monopolizado por Adão e Eva, muito menos imposto pelas igrejas. O amor, este sim, emergiu muito antes de qualquer criação, e talvez seja isso que importune tantos padres e pastores, alemães ou não. Todos já temos a certeza de que mesmo antes de deus e toda sua mágica, havia o amor. Este sim criador e criatura. Este sim onipresente. Este sim todo poderoso. Este sim único e indivisível. Este sim pastor, pai, espírito, santo, que nada faltará desde que todos os dias rezem a ele. O medo de que este amor guilhotine deuses déspotas, orgulhosos, pecadores de seus próprios mandamentos, narcisistas, faz com que novos fascistas se  transvistam de capitão do mato a caçar aqueles que praticam a fuga de uma sociedade impositora e impostora da verdade, aqueles se aquilombam para se amar. Nesse novo holocausto os corpos massacrados se negam a se escurecer, e vagam pelas cidades em pares de manequins de plásticos interligados. Parece que as lágrimas de familiares, amigos, amores dos assassinados barbaramente fertilizam o solo por onde passam, e de alguma forma recriam não-biológica, mas poeticamente, moldes de seres humanos que só queriam ser felizes. Se esta memória é só de corpo plástico, pouco importa, pois foram também obra das almas, que antes de subir aos céus, produziram as estátuas plásticas. Não mais será necessário mostrar à sociedade pilhas de corpos osso-puro como em 1945, automaticamente os manequins já se prestam a mostrar o absurdo do massacre. O amor é primo da morte, e da morte vencedor, por mais que o matem a cada instante de amor; se já disse um poeta, os manequins nos provam.

Lua, Luiza


Desde o primeiro dia que vim parar aqui, esta é a parte da qual mais gosto: a noite, com seu silêncio e o céu de grandes furos. Há muito tempo venho pensando nisto, ainda mais quando tem lua. Talvez seja apenas eu a admirá-la hoje, outras pessoas com certeza não possuem o tempo como eu o possuo. Naquela multidão de pés uníssonos na mesma direção caminham, correm ao mudar de uma máquina, vermelho, verde, verde, vermelho... parando e levando vai outra multidão, estas também em suas máquinas, que obedecem máquinas. Ainda bem que não sou um pássaro, um passarinho, capaz seria eu de pensar que não existiria vida inteligente ao solo; capaz seria eu de pensar que somente na república do céu existiria liberdade.
Voltemos à lua, tantas vezes cantada: sim, eu escuto, já escutei uma bonita música sobre ela, embora só tivera eu compreendido a palavra lua. Entretanto, só isso me fazia agraciar àquela música com o prêmio de meus ouvidos; devo confessar, apreendi-a também por dizer meu nome, Luiza. Um colega já me disse que é por isso que tanto falo da lua, por ela combinar com meu nome. Sempre gostei de saber os nomes das pessoas, é uma coisa que me causa cativeiro... talvez por achar o meu muito mais bonito do que de meus colegas. Dar-me-ia imenso encanto se a cada pessoa que por aqui passasse me dissesse seu nome, assim evitaria que eu passasse o dia a dar alcunha aos que por aqui passam. Que não digam, acho porque não possuem o tempo – seria um tanto desgostoso. Os animais, esses sim, sei seus nomes, até aqueles que não os batizei. Tenho um cachorro, Rex, se não é original, pelo menos é fácil de dizer.
Voltemos à lua, com seu vestido de noiva, sem noivado, porém. Seria triste a lua por isso? Talvez um daqueles senhores de terno que por aqui passam pudesse me responder esta questão. Se ao menos eles falassem. Ainda bem que não sou nenhuma flor, capaz eu seria de pensar que só existe amizade entre eu e a borboleta e a abelha e os outros pequenos; capaz eu seria de me entristecer e não mais pétala daria luz, nem lua, nem Luiza poderia me cheirar. Senhores, aqueles de terno, sentem muito frio, eu aqui só o sinto quando a noiva sem noivado não vem me cobrir.
Voltemos à lua, pois já vai tarde, e o frio não perdoa quem tem como o teto somente as estrelas, como cama o azulejo, como amigo um cachorro, como casa a calçada, como esperança somente a lua.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Pequenos ditadores

O que me amedronta não são os grandes ditadores. São os pequeninos. Começam puxando e carregando o saco de outros pequenos ditadores. De tanto esticarem, escalam a pequenos cargos onde se mostram muito eficientes. Não me amedronta os ineficientes. Os muito eficientes, esses me fazem mercadejar sonhos por pesadelos. Começam apontando dedos a subordinados e a insubordinados. De tantos dedos em riste, sentem dedos fingirem-se espadas, e postos acima se convencem a desferir golpes napoleônicos alrededor. Não muito tempo se passa para que a larva se metamorfose em vespas, pequenos insetos responsáveis pelo controle biológico: devoram outros insetos, obviamente menores, já que é comum no mundo invertebrado a convardia e o respeito à ordem e à hierarquia. Poucos conseguem chegar ao Senado, Câmaras ou Ministérios. A evolução é rígida com os mais fracos. Pouco a pouco dão lugares a novas espécies de ditadores. E assim sempre teremos grandes ditadores que começaram como pequenas larvas. 

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Não nasci, fui refugiado

Me pareço cada vez mais com mercador de tempos, troco com sol a responsabilidade de vigiar a lua. Nunca foi de grande importância para mim esse jogo de esconde-esconde com as luzes solares, não sou planta. É sempre esquisito estar acordado quando todos estão a sonhar, e a sonhar quando os outros estão a chorar a vida. Talvez tenha sido o meu vir ao mundo que causou toda esta confusão. Os médicos ficaram abismos quando descobriram que não queria nascer. Já tinha encontrado morada bem confortável entre a bexiga e os rins de minha mãe, por isso meu choro inaugural foi de saudade, sem lenço, silêncio. Por mais que me batessem, e sentia cada palmada como uma relhada de chicote escravo, era a lembrança de um mundo mais maleável, mundo astronauta desgravitacional, mundo dançarino, que deixou sua primeira impressão em minha mente, e a primeira impressão é a que fica. Ficou, tanto que procuro a sombra à luz. Não nasci, fui refugiado, sem-teto de guerra monóloga com as autoridades sanitárias. As lágrimas se evaporavam de mim, sulcaram tantos solos, vindos de cachoeiras de cloreto de sódio precipitando ao chão, que meus olhos se juntaram para consolo irmão. 

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Prefiro deixarem me remar

Não sou homem de poucas ganâncias. Tenho-as todas, sem receio. Senhor diz, feliz é ter felicidade, família, amigos, pessoa com quem contar. Digo, teria se tivesse proveito monetário? Mas senhor insiste, me diga quem não se vende por vintém? Aposto por um tudo, que se dobrasse aqui centenas de qualquer coisa, coisa senhor não faria. Não lhe pagam todos os meses para fazer o que mandam? Não me venha com choramingos de que o que vale nessa vida é ter felicidade. Amanse seus dizeres, estamos todos em barco comum. O fato é que alguns remam, outros se deixam serem remados. Prefiro deixarem me remar. Desculpe a sinceridade e as metáforas gastas. O que me manda é o fim do mês. O que não quer dizer que eu seja uma má pessoa. Outra vez mesmo, veio um menino aqui na minha porta, um pretinho, pedindo dinheiro para comprar comida. Dei-lhe um prato de arroz e feijão. Eu dei comida, não dinheiro. Mais fácil é dar o peixe, mas prefiro dar a vara de pescar. Essa vadiagem de hoje em dia está me desgastando. Não lembro disso quando era criança, sempre todos em seus afazeres. Não desculpo o governo, mas existe trabalho para quem quer. Mas não, preferem vadiar. Muita violência também. Ontem, quinze de meus escravos, eu disse, quinze de meus escravos amarraram o Zé, lembra do zé? aquele portuguezinho que me recomendaste para governar minha fazenda, sujeito bom, tem boa mão com os moleques, pois, amarraram o zé lhe relharam amarrado numa árvore. O que você quer que faça? sai daqui do rio imediatamente pra vassouras, e conversa daqui conversa dali com meus negros, descobri. Não ia mandar para prisão todos, senão não tinha colheita. O delegado andou me importunando, dizendo que seria perigoso se não houvesse um castigo exemplar. Mandei o zé embora; como ele vai fazer pra botar esses caras pra trabalhar? não tem mais condições, vai ser riso na senzala por muito tempo. Deixei o promotor e o delegado investigarem, mas já dei meu jeito. Fiz tudo para eles, comida tem, roupa tem, domingo não trabalha, tem roça. Isso é ingratidão, pior é traição. Concordo com o senhor que o tráfico tem que acabar, é cancro da nossa sociedade. Com essa situação não tá dando mais. A época de meu pai tudo era mais feliz naquela vassouras. 

domingo, 16 de outubro de 2011

Afinador de silêncios

O que trago sobre os ombros é meu e só meu, sustento sem implorar a benção e o pesar. Não atribuo a culpa a ninguém por não ter mais, nem mesmo vítima de mim, desprezo o que nunca vou ter. Cheguei a acreditar que o êxito tem vários pais, mas o seu revés só possui orfandade. Ninguém me disse para sentar-me à beira da estrada, fazer pose para fotos. Se continuo solitário não é por falta de companhia, é para afinar meu silêncio. E nessa calibragem sempre descubro pai de mim. O caminho não é feito pelos pés? E os meus nunca aceitaram regência nem mesmo de seu maestro, muitas vezes parece ter tido outras vidas, outros calçados, outras calçadas, outros corpos a suspender. Confio neles, por isso não me preocupo quando levantar, ficarei de pé.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Lembram-se?

Lembram-se que as rosas não falam? Dos versos de avó, coralinos, a nos embalar com histórias de que nada faz sentido se não tocarmos o coração das pessoas? Lembram-se das sem-razões do amor, que o amor é primo da morte, e da morte vencedor, que por mais que o matem (e matam), a cada instante de amor? E de Gandhi a nos dizer para ensaiar um sorriso e o oferecer a quem não tem nenhum? Não se lembram? Não devem ter tido tempo para isso. A vida é muito dura para quem precisa sempre reconstruir desculpas para desamar.

Placas tectônicas de xerume

Flores de plástico inundam shoppings centers. Uma praga faz com que flores de plástico se reproduzam em todas as cidades. O mistério só foi desvendado depois da descoberta que estamos acima de placas tectônicas de xerume. A ameaça parece ser séria, apesar da imitação de flores agradar os olhos de muita gente. 

terça-feira, 11 de outubro de 2011

A maldição

Foi culpa de Caim, filho de Adão e da sua costela. Revoltado porque seu irmão Abel ganhara playstation, o filho da costela de Adão, assassinou seu irmão. Desde então, comemora-se o dia das crianças. Algumas nem bem germinam são logo submetidos a presentes, pelo pavor de se tornarem crianças assassinas. Mas alguns pais descuidados se esquecem da maldição, e nos noticiários somos bombardeados com notícias de mortes que saem das mãos que nem conseguem segurar arma. 

domingo, 9 de outubro de 2011

O tupinambá


O tupinambá ainda está sem resposta. Em um dia de 1558, ele se virou para o francês Jean de Léry e perguntou: "Por que vindes vós outros, mairs e perôs (franceses e portugueses), buscar lenha de tão longe para vos aquecer? Não tendes madeira em vossa terra? Porventura precisais de muito? Mas esses homens tão ricos de que me falas não morre? E quando morrem para quem fica o que deixam?" 
Há mais de 400 anos, essas perguntas seguem sem respostas.


segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Menino dos olhos infinitos

Era dia do resultado do jogo-do-bicho e tinha minha mãe apostado no lobo, nem sabia que existia lobo neste cassino animal. Ela ganhou seus cem reais, foi dia de festa na minha casa, teríamos direito a sonhar com um almoço mais luxuoso, mais do que nos dias de festas de papai Noel, quando ele nasceu na manjedoura para a partir daquele momento distribuir roupas usadas, feijão e outros alimentos às famílias da minha rua. Não calendarizava nenhuma festa especial, se não fosse dia de Oxum. Dizia minha avó que logo que todos os Orixás chegaram a terra, organizavam reuniões das quais mulheres não podiam participar. Oxum, revoltada por não poder participar das reuniões e das deliberações, resolveu mostrar seu poder e sua importância tornando estéreis todas as mulheres, secando as fontes, tornando assim a terra improdutiva. Foi porque talvez minha família não tivesse feito bori devido a Oxum e agradecido aquele dinheiro que sucedeu o acontecido. À noite, dois homens entraram em meu lar e roubaram a alma de minha mãe, levaram o dinheiro e me deixaram com os olhos infinitos. A partir desse dia, tudo ocorreu como se a realidade se vertesse em lenda, e hoje não distingo o que aconteceu do que eu sonhei. Apesar de tudo, fui nascido outra vez no acariciar e no sorrizar de uma outra mãe, se não me amamentou me deu novos olhos, como a cada palavra lagrimasse minha retina, inundando aquele deserto estéril que fora atracar meu barquinho. Sem falar de novos corações que vieram a ritmar com o meu, o de minha irmã e de meu irmão mais novos. Certa vez uma senhora tentou me jogar ao infinito outra vez, na imensidão solar das areais, ao narrar a história dos meus olhos, mas logo o barulho de minha mãe sorrindo me fez despertar e fazer daquela velha piada de picadeiro. Sigo esta vida agora, a pedir que minha mãe antes de dormir venha me acariciar com seu riso.

domingo, 2 de outubro de 2011

Solitário chão

Era um lugar que ficava para além de todas viagens. Por ali só o vento passeava, aguamente. Naquele solitário chão há muito que o tempo envelhecera, avô de outroras. Testemunhas? Só Deus, se estivesse vago. Não se rasgava o silêncio, de repente se escutava a voz da poeira. O amanhã carecia de comprovação, o passado de véspera. Foi quando Antônio Klemav aportou por aquelas estradas. Trazia consigo uma caixa de fixar o tempo: dizia aos anabitantes que estava a procura de raízes do Brasil, das muitas origens, daquilo que sobrou do início daquele maravilhosíssimo país. Poucos deram os ouvidos, muitos os guardaram. Falava de um novo futuro, mas as despessoas daquele lugar nem haviam sequer pensado no velho. Seria arrebatador, e por isso Klemav estava ali. Não se espantou diante de repetidas negativas, quem entendia aquele bando de zés? Voltou ao altar da uninverocidade, muitos acadêmicos lhe davam importância. Após enroscar tantos nomes e tantos escritos, sentenciou: o campo se terminava, em súbito desmaio. E foi aplaudido, por duas ou três pessoas, seus alunos, claro, ganhariam bolsas, claro, e passariam a vida toda a bater as duas frentes das mãos até que as bolsas terminassem, claro.

sábado, 1 de outubro de 2011

Perdi a voz

Perdi a voz. O sangue escorria, descia até lençóis subcutâneos da terra. Não eram médicos a operar, eram operários a medicar a eutanásia através de escavadeiras e retroescavadeiras. Milenar, as raízes escondiam-se para não serem achadas pelas lâminas, e venciam a batalha pelo tamanho de sua ancestralidade. Em cidades hipermodernas não precisamos mais reverenciar nossos antepassados. As árvores viram circo, artefato de decoração; sem mais pulmão para aguentar nuvens de gás carbônico, acabam adoecendo, cânceres de todos os tipos são diagnosticados. Falecem, viram túmulos a nos fazer lembrar que nem sempre as coisas foram assim. E por isso, incomodam. Quem gostaria de testemunhar nosso fracasso em nos humanizar, em nos harmonizar? Perdi a voz, não só a ver em minha frente aquela tragédia, perdia a voz por não poder mais sensibilizar ninguém com este discurso.