sábado, 29 de novembro de 2008

O pedido ao Papai-Noel


Estava eu como Papai Noel um dia em um Shopping Center. Acercou-se uma criança tímida, naquela tentativa de se esconder da exposição que hoje enfrentamos, ela veio com seus olhos de quem há muito deixara de acreditar em papais-noéis. Acreditei que ela viria puxar minha barba, crianças assim existem aos montes hoje. Aliás, não existem mais crianças, esta tenra idade somente cativa nossa mente adultera, uma dela já me perguntou se eu tomava algum remédio para o meu possível problema de ereção, outra me veio falar das curvas efêmeras do crescimento econômico dezembrino, outra apenas me disse vamos acabar com essa babaquice logo velinho, ponha-me no colo e peça para esta vadia vestida de Mamãe-Noel tirar essa foto, não agüento mais minha mãe e seus problemas psíquicos. Pelo contrário, os pais é que parecem acriançaram e cada vez mais se apegam ao que dizem, e tentam enganar os próprios filhos afirmando que eles também acreditam em papais-noéis. Costumava eu receber pedidos de comida, cadernos, entrada para os shows da Xuxa (que deixem aqui, a única criança que ainda se mantém criança) quando era visitado por crianças pobres, ou politicamente incorreto, crianças com pouco poder aquisitivo (as de hoje já aprenderam que nós somos caracterizados pelo que podemos comprar). Quanto mais o poder aquisitivo aumentava, também os pedidos proporcionalmente demandavam mais esforços, como uma vez uma menina me pediu uma viagem de ônibus espacial – pensei eu, era só pegar o 100 que ela vai ver algo muito impactante. Porém, voltando àquela pré-adolescente, como os meninos e meninas de 0 a 12 anos preferem ser chamados, depois de pré-adultos, só quando chegam à idade da contagem regressiva é que as pessoas preferem ser chamadas de pós-adolescentes, pós-adultos. É assim, à medida que as empresas demandam um número cada vez maior de pós-graduações, adaptamos às nossas vidas este prefixo. Ela, a criança que vinha em minha direção fez o pedido nada a ver com aquele “centro de lojas” (o significado bruto da palavra shopping Center), gostaria de um emprego a seu pai, que desde que se formou na École des Hautes Études em Paris, nunca conseguiu sair do carrinho de pipoca. Não que vender pipoca seja degradante, me informou antes de qualquer juízo de valor que saísse de minha boca, muito pelo contrário, ele havia desenvolvido um dispositivo de combustão reciclável, patenteado, mas que não fora devidamente tornado público porque Paris não o mais aceitou, eles não queriam nada de novo, gostavam mesmo do mundo como está. Na carta de não-admissão veio somente um “não-aceito” sem mais delongas. Outro trabalho produzido por seu pai teria sido uma tese sobre a organização dos trabalhadores informais durante os anos de FHC, contendo até dedicatória e agradecimentos mecânica e academicamente direcionados aos futuros-orientadores do instituto de filosofia e ciências humanas daquela mesma instituição. Também, sem delongas, tornara-se um membro do desemprego intelectual da qual nossa população desacadêmica sofre. A partir desta negativa passou a não mais pensar em algo que pudesse melhorar a situação precária brasileira, tento desenvolvido sua pipoca um gosto de amargura que corrói o estômago. Todos que comiam daquela flor-branca reclamavam de gastrite, talvez as decepções de seu pai elevaram a acidez da sua mercadoria. Por isso, não tinha mais lugar neste mundo, virara sem-teto, sem-emprego, sem-educação, sem-terra, um brasileiro. Descera ao degrau último da hierarquia social, virara mendigo. Depois de toda essa explicação, disse à criança que faria o possível para encontrar um emprego para seu pai. Passaram-se dois anos, e encontrei o seu ente paternal devidamente empregado. Tornara-se papai-noel e trabalhava no mesmo local onde emocionado ouvi a história de sua vida.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Flores sem floresta

Certas vezes, escuto como se estivesse encavernado, que eu não trabalho. Vivo do lixo, por isso, para todos, eu me transformei em lixo, assim como um médico se transforma na salvação, um engenheiro numa construção, um professor num senhor. Por incrível que possa parecer, prefiro ser lixo do que não ser. Não é que eu goste de buscar algo que valha em um amontoado de nada, mas por que toda a vez que minha mão afunda tenho a esperança de encontrar algo que valha. Em outros lugares sei que nem se eu mergulhar nada irei eu encontrar. Sou lixo, porque sei que dentro de mim, posso reciclar-me. Assim a estrada me caminha. Uma noite, estava eu a dormir em uma cobertura de loja, o frio me queimava e me cobri até os globos e mundos oculares, quando vi um caminhante de mala cheia a minha frente. Como ele parecia-me, como ele era eu e eu ele. O susto fez assaltarem-me os olhos. Morri nesta noite, não foi assassinato como o de Galdino ou de espancamento como o da empregada doméstica sem-nome dos jornais. Morri porque descobri que eu não era um indivíduo; que eu não prestava para ninguém, os rostos já me diziam. Descobri que eu era, na verdade, uma montanha de papelão, e que isso não significava nada depois de utilizado, a não ser para pequeníssimos insetos, que resistem em viver neste mundo. Descobri, por fim, que eu era parte da paisagem, como são as flores sem floresta a se angustiarem nas janelas de apartamentos.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

A janela

Abriu-se a janela, entretanto, a paisagem era cinza. Cor de concreto, citadina, os meus olhos parecem se camalear. Debruço-me, buscando encontrar outra saída, outras passagem, outras paisagens, mas tudo que vejo é cor de nuvem carregada. Despreocupo, desimporta saber o tom da miragem, ela sempre será algo inalcançável. Me importo sim saber que cheguei até a janela. Foram passos de caramujo, levando sua vida sob os ombros, sabendo mais lento que a estrada. Ainda lembro o iniciar, o gaguejar com os pés, e hoje me encontro aqui, à frente deste muro. Meus olhos se acinzentam, não tem porquê. Logo vem a água que faz-nos renascer.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

De saída

Vinte milhões de dólares. Graças a deus que o Banco Central americano depositou este volume na conta do Citi Bank. Não agüento mais esta crise, essa situação estressante de ter que todo dia acordar sem saber se vou ter meu dinheiro assegurado. Bons tempos eram aqueles, de calmaria, aquele ar-areia no meu rosto, meu dinheiro se multiplicando a empréstimos. Hoje ninguém mais quer empréstimo? Eu empresto, sou um filantropo. Já é meio-dia, preciso buscar meus filhos na escola. Neste colarinho e gravata apertados no ar condicionado, deveríamos condicionar tudo nesta vida, afinal somos quem faz esse país girar e girar e girar. Somos a gravidade, quase. Deuses a tapear a terra, não deixando nunca desacelerar o movimento, somos sim. Preciso me apressar, Isabel sempre reclama dos meus atrasos, não por maldade faço, não acredito que tenho um coração mau. São os problemas de cada dia, esse recesso seco. Vladimir, meu querido, vou buscar meus filhos na escola, faça-me um favor, diga ao motorista para abrir a porta do carro, obrigado meu querido, você é o meu funcionário favorito, eficiência e obediência. Penso aqui: não posso sair desta maravilha de temperatura amena e esperar que o motorista abra a porta do meu carro, nesse tempo, inundarei meu corpo todo à espera das águas transbordantes, o calor da luz faz minha pele ressecar. Não acredito. Esta esfarrapada outra vez aqui na frente do banco! Não tem trabalho neste país não? Vai trabalhar ao invés de pedir esmola! Isso que é vida ganha, aí sentada só pedindo moedas. Aposto que ganha milhões todos os dias. Não, exagero. Ah! Quem se importa, sou eu que vou dar valor a uma pessoa que não ganha a vida honestamente? Eu que dei duro na vida, a cada um milhão de dólares emprestava a juros sempre honestos, pequeníssimos, não sou um agiota regularizado pelo Estado, como me disse meu irmão. Sou um servidor público. Se não fosse eu, onde iriam as pessoas guardarem seu dinheiro? É claro, cofre não trabalha de graça. Eu preciso dar leite às crianças, playstation 3 também, tv de plasma... conforto é o que vale na vida. Entretanto, esta velha aí safada, por que não procura um emprego? Sei lá, quem sabe engraxar meus pés, eu lhe daria umas duas moedas, dois centavos é muito hoje em dia. De grão em grão o papa se enche de galinhas, já dizia um romancista. Vou fazer uma proposta para o governo, quem sabe montar um albergue para toda essa gente... assistencialismo é marketing. Sairei na frente dos meus colegas agiotas, quero dizer, empresários, ao invés de mostrar um monte de árvores na propaganda da televisão, dizendo que somos um banco que apóia a sustentabilidade ecológica, vou lançar uma campanha reforçando que minha grande empresa suporta não apenas a sustentabilidade ecológica, mas também a social. Se eu gasto pouco dinheiro plantando tiririca no pasto lá da minha fazenda, posso gastar mais alguns vinténs pra comprar um pouco de pão para esse povo pobre. Não é à toa que somos o maior banco deste país, só nos últimos anos lucramos acima do esperado. O marketing é tudo. Contudo, ou connada, para não manchar a vitrine da minha empresa de fedor, vou mandar o segurança dar uma sumida com essa mulher. Não posso ficar toda a vez que entro no meu carro, no meu ar condicionado, vendo esta cena entristecedora. Talvez não, melhor deixá-la aí, pelo menos ela impede que outros venham me pedir dinheiro. Não entendo o porquê de tanta vagabundagem. Vou fechar meu vidro, assim escapo desse mundo.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

A fábrica

Entrei. Logo procurei um canto esconderijo, avistei um banco e sentei. A adrenalina já baixara, consegui me desaperceber. Coisa acostumada nos outros bancos que freqüento, dias de chuva ou de estrelas. Dizem que as estrelas são gigantes bolas de calor, pra mim sempre as vi como teto, uma abóbada perfurada, onde deus rega-nos. Aqui não dá pra saber se é noite ou dia, se é quente ou frio, aqui é só aqui dentro, nada mais. Mortos iguais a esta planta ao meu lado, mais um enfeite do que algo que respira. Foi a primeira vez que entro em um shopping. Das outras guardo as marcas de dedos dos policiais vestidos de advogados. Sempre escutei falar destas terras cá, de quanto luminoso é, de quanto perfeito é, de quanto esquisito também é. A olho nu, sempre da rua, via pessoas indo e vindo, entrando e saindo, sorriso a rasgar a boca, por isso, chamei de fábrica de felicidade. Lá fora tudo é chuva, mesmo em dias solares, tudo nublado em céus azulados. Minha intenção era só de fazer como os demais, aquelas incolores pessoas, entrar neste mundo de fazer felicidade. Contudo, mais uma vez saio puxado por um desses advogados-policiais. Agora sim faz chover neste arcabouço, não consigo conter minhas lágrimas e chovo. Por que não posso também entrar na fábrica de felicidade, na fábrica de sorrisos. Acabo de chegar à conclusão que esta fábrica é para seres vivos, não para mim, algo que nem a planta que busquei refúgio: sem luz. É melhor voltar ao meu cobertor, na minha calçada, aqui fora também chove, preciso de uma cobertura para me aquecer e dormir. Resta-me dormir.

domingo, 23 de novembro de 2008

Meu cemitério de abelhas

Cultivo meu próprio cemitério de abelhas, cativo-o, regando-o todos os dias. Não é árdua a tarefa de me explicar, de me explicitar, de me fazer ouvidos. São as abelhas sem-teto que invadiram o orifício do poste luminoso à frente de minha janela, de minha recepção solar. Famintas, imagino os losangos de seus olhos cinza de sede. A falta de vida faz das abelhas tal qual miseráveis, mendingas de pólen. Batem no meu vidro, posso escutá-las a pedir um pouco de comida, água, verde, flor. Retruco-as, infelicitando-as com a notícia de cá do outro lado do grande muro que é o vidro de minha janela não verdeja, não há frutos, não há vida. Mesmo assim, desesperadas, transmutam minhas palavras em esperanças de louco, e insistem em entrar, em invadir meu sacro-santo lar, minha propriedade que a constituição, o livro sagrado dos gigantes, afirma ser inviolável. Não posso, contudo, com tão vermelhidão olhar, com tão sedento salivar; suas gargantas, imagino inflamadas pelo repetir da reprodução interna de água, um rio de células que surfam da língua ao estômago, e uma vez lá, voltam à boca no circular movimento das chuvas de saliva, goteiras no nublado céu-da-boca. Seu zumbido organiza e informa que do outro lado do muro existe um paraíso, onde irão todas as abelhas desfrutar de todo a fosforescência dos gira-sóis, da igualdade no jardins do Éden que lhe contavam as suas avós-abelhas, sonhos de outrora revivendo em meu quarto. A abelha-rainha já não mais os conduz, abelhas-jacobinas tramam sua degola após atravessarem o grande muro, e isto é acalentado em toda reunião em frente às coméias. Observam elas, as jacobinas, os meus horários de abertura de janela, estudam elas, os dias mais propícios à invasão, sempre ao jantar comunitário de alguma perdida flor que nasce do asfalto duro, refeição como dúzia de pão fosse repartido por milhões. No dia previamente estabelecido, elas furam o bloqueio e adentram no tão resplandecente paraíso, não mais ligando para os momentos de fome que passaram no deserto de Moisés, como se Deus quisesse as castigar. Seus olhos brilham ao ver a fonte ininterrupta de alimento, uma cachoeira a jorrar felicidades, um tempo que fará do passado arqueologia, e do futuro uma eternidade, não precisarão de relógios, todas as horas serão de fartura. Seus motores aceleram em máxima rotação, seus volantes firmes em direção à fonte, ziguezagueando de minhas mãos repressoras, policiais disfarçados que rondam o oásis dos prazeres sem-fim. As poucas, jacobinas, que lá chegam encontram a luminosidade tão forte, tão firme, tão atraente que não param um minuto de bombardear de sangue seus cérebros, zubizando até ficarem roucas. Ao fim de tanta jornada, famintas, não podem esperar mais, suas capacidades mentais não são as mesmas de poucos instantes atrás. Rodando ao redor da fonte se desesperam, porém, ao notar a fria realidade que lhes aparecem aos olhos, ao bater as patas na lâmpada notam a superfície lisa, escorregadia, não provedora de qualquer substância que as faz alimentar, revivar sonhos. A morte vai se apossando de seus pequinitos corpos. Numa atitude digna, apontam seus ferrões à suas cabeças e lançam mililitros de veneno em suas mentes. Jazem no suporte da lâmpada e ali é que, a cada dia mais e mais, pais-de-famílias abelhas à busca de sustento para suas insignes brancas-larvas deitam-se em seu último leito, seus corpos sem coveiro que lhes rege as plantas da sepultura, sem parente para chorar no dia de findados. Da minha cama observo o desespero desta raça, seus corpos a formarem uma lua esburacada parecida com a que vejo da janela, o grande muro. Pobres criaturas. Graças a Deus minha raça, a humana, nunca passou por isso.