sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Mercadoria

Eu pelo menos sei o que sou. E você, que finge felicidade, que finge magreza, que finge inteligência. E você, que se vende por um salário, alto ou baixo, é o que se não um objeto? A mercadoria não é aquela que se coloca à venda? Vende-se em troca de consumo, e é consumida pela vida que não possui. Já pensou que felicidade não é mercadoria, sorriso também não, por isso não sorrio. 

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Valentim

Entrei em um turbinhão de onda, a batida me deixou em transe. Em questões de segundos, sonhei com um escravo que dizia "tão forte quanto sua casa, você manterá sua vida por mim. Quando você sair do mar, leve-me distante, que eu posso viver para sempre com você". Voltei a mim, descarregado na areia da praia, na minha mão, conchas. Depois descobri que seu nome era Valentim, escravo da avó de meu bisavô. Havia salvado sua vida em 1885, em Minas Gerais; a minha salvou mais de cem anos depois. Guardo-o agora em conchas e elas estarão comigo ao quando eu fizer a travessia da calunga. Cantando subirei: o cativeiro se acabou.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Afluente

Senhor, só tenho a ti para recorrer: que as águas não façam de minha casa afluente.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Pra que Deus lesse

Não pude mais. Deixei aí pra que Deus, se souber ler, lesse. Mas ainda acredito, como aquele salva-vidas acredita que pode salvar vidas, espero que ao menos a minha, eu possa salvar.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Confissões

Me sinto profundamente arrependido, não como a enfermeira assassina. Ando a colocar fogo em árvores de calçadas. Começou quando fui procurado por um grupo de comerciantes que não mais aguentava os frutos caídos, diziam-me que a sujeira estava atrapalhando seu varejo. Bateram à minha porta, sabiam que eu faria o serviço sujo - e fiz. Com o tempo, a fama me fizera dos maiores cortadores vegetais que essa cidade já viu. Quando o peito inflama, poucos são capazes de fazê-lo voltar ao funcionamento normal. Meus requintes de crueldade aumentavam na mesma proporção que minha anosmia. Desenvolvi a síndrome de Kallman, mas de uma forma muito especial, o verde não mais me cheirava. A perda de olfato estava intimamente com a minha daltonia, tudo parecia preto e branco. Passei a não somente matar árvores e arbustos, por fim, passei a queimá-los, estava convencido que meus advogados cuidariam para que eu fosse absolvido como os garotos de Brasília que incendiaram Galdino. Não espero julgamento justo, porque sei que não terei, os juízes gostam de calçadas lisas para colocarem seus carros. Eles nunca me julgariam. Nem sei porque ando a escrever, assim porque andei a complementar a matança de índios destruindo flores e florestas.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Porta retalhada

Valeu a pena sim. Se um dia te fiz sorrir, valeu a pena sim. Mesmo que tivesse que retalhar minha porta. Remendá-la, pois sou poeta de rimas fáceis, sempre tentando fazer de minha fachada o melhor possível, o possível para que não sinta-me apenas uma porta retalhada.

Quando o amor criou deus

Quando o amor criou deus, não se decidiu se seria felicidade ou tristeza. Ou se seria os dois. Provavelmente, deus como um bom cristão, não quis se meter: a hierarquia do céu é bem definida.

Idade de estátuas

Gosto disso. A cada dia menos sei. Chegarei a idade de estátuas, dia em que tudo o que disser já se ouvira há milênios.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Carpintar

Foi num repente feito fogo morro acima: certo dia descobri que estava a construir um navio. Inacreditei. Como as tintas das pinturas a se experimentarem, as madeiras também fizeram seu mistério. Cada dia, cada entalhe, cada detalhe se mostrava feito casulo quebradiço, feito lua-cor-de-mel em eclipse. Chamei todos para verem o que se desenhava em meu quintal. Um barco, quantas histórias poderíamos viver e inventar a partir daquele momento. Mal poderia adivinhar o que me viria, de minha própria família. Minas não tem mar, Benedito, então me disse minha irmã. Então quer dizer que essas terras vermelhas não desaguam? Por isso são vermelhas, sangram, explicou-me um velho poeta. Sentei-me várias vezes a pensar navio, em frente. Não poucos dias encarei: havia levado vida e meia a construir um navio, que nasceria encalhado. Até que em outro repente decidi. Voltaria a carpintar, era para isso que renasci.