quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

A fruta-pedra

Era uma fruta-pedra. Nascera de ventre vegetal, mas pertencia ao mundo do concreto. Chegara à fase madura sem que nenhuma pessoa a percebesse, com a velocidade que nos movemos cotidianamente nem mais se dá conta do sol, da lua, das estrelas, quanto mais de uma fruta. Frutas nascem todos os dias e amadurecem cada vez menos, não conseguem chegar à idade adulta pela evolução que os homens a impuseram. O azedume impregnou-se no mundo das almas dos frutos que não conseguiam mais dar à luz a filhos iguais aos de muito antigamente. A fruta-pedra era a evolução da espécie, era a cor do progresso. Cinza são os nossos anos, cinza são as feridas que petrificaram-se tanto nos organismos vegetais que seus cachos agora penduram pedras. A tristeza da mãe que concebia aquele filho cor asfáltica foi alimentada pelas águas-mágoas ou pelas mágoas-águas que subiam em seus corpos, vinham de baixo vinham de cima. Por isso, não fora a fruta-pedra criação somente da natureza, fora uma criação das mais felizes para os sempre sedentos construtores de prédios. Como sua cor, a nova espécie nada tem de original, como filha da terra e do concreto. É a metáfora daquilo que o homem transformou e transformou-se, num semeador de cinzas.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

O encontro com Paulo

Agora lembro-me que foi a última conversa que tive com Paulo. Encontrei-o andando pela Universidade Federal Fluminense, em Niterói, vagaroso andar, pensativo. Embora cheia de estudantes, fui somente eu que o reconheci. Após a apresentação inicial, caminhávamos para o Bloco N, onde eu iria entregar minha monografia de final de curso e ele encontraria uma velha conhecida. Sua intenção era chamar uma professora, sua antiga aluna, para trabalhar com ele nos EUA. Dizia-me que tinha sido convidado pela Harvard para ministrar um curso; diante de minha surpresa, ele se adiantou e disse que talvez eles, os estadunidenses, precisassem de alguns intelectuais mais críticos para enfeitar o bolo da sua “democracia” – nesta palavra coloco aspas pois o gesto de Paulo foi o de mexer os dois dedos, indicador e médio, das duas mãos para cima e para baixo, como se estivesse raspando algo no ar, sinal este de contradição numa conversação. Disse-lhe que gostava muito de saber que não estiva cansado de sua luta política, o que fê-lo loquazmente abanar a cabeça em negativo. Não é porque estou mais velho que deixei de amar as pessoas, afirmou-me. E assim íamos do bandeijão até o Bloco N, onde se localizava o departamento de história daquela universidade. Ao chegarmos no prédio alvo, descobrimos que o elevador estava descansando, devido à sua avançada idade, e por isso deveríamos subir cinco andares. Esse é o Brasil, exclamei aos céus na esperança de impressionar meu interlocutor. Esse Brasil somos nós, Paulo disse por entre sua barba branca, na doçura que não me fez perceber que me corrigia, como se aquela frase dissesse que não devia eu colocar a culpa em uma coisa abstrata chamada Brasil, senão em nós que fazemos parte do coletivo deste país. São poucas pessoas que tem a capacidade de falar muito em uma pequena frase. Subimos a passos de caramujo, levando nossas casas às costas. Ao quinto andar, finalmente, nos separamos justamente quando me falava indignadamente da morte do índio Galdino. A última frase foi uma sentença: “não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, torná-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor”. Queria dizer-lhe que eu concordava imensamente com o que ele dizia, mas fomos separados pela bifurcação do corredor. Eu parei para entregar minha pequena monografia de final de curso, ele seguiu seu curso à procura da professora. O alívio daqueles dias me subiu à cabeça quando deixei aquele trabalho tão difícil de escrever. Escrevi sobre o comércio de escravos em Vassouras, com o mesmo tema tinha deixado um projeto na pós-graduação. Foram dias de viagem até Vassouras, uma hora de carro de minha cidade, mais as horas codificando os números da venda de escravos naquela região no século XIX. Acreditava eu ter uma dívida com esta cidade, que anos atrás tinha me acolhido tão bem. Não era nada inovador o que escrevi, nada que merecia mais do que a atenção devida. Ao sair do departamento em direção à escada, pois o elevador continuava sua ressaca, por um acaso, reencontrei Paulo em direção oposta e fui ter com ele. Decidimos então descer pela segunda escada, pela simples questão de ele estar mais perto desta do que daquela que havíamos subido. Empurramos a porta que dava acesso à escada quando nos demos com uma pilha de lixo. Pensei que fosse a cesta de lixo que havia caído no chão por algum descuido. Para minha surpresa não era. Naquele lixo estava, misturado com copos plásticos e restos de café entre outros cheiros que não pude identificar, o projeto de pesquisa que havia entregado à pós-graduação de história. Fiquei sem voz. Meus olhos não contiveram a sensação de ser tratado como resto humano e alagou-se. Tirei uma foto que pretendia enviar à coordenadora para cobrar-lhe resposta. Não enviei. Descemos, eu e Paulo, até chegarmos sem nenhuma palavra à barreira de entrada da universidade. Os seguranças deixaram-nos sair e nesse momento já respirava melhor. Foi quando Paulo me disse que seguiria direto para a rodoviária, necessitava arrumar as malas em São Paulo e partir. Por curiosidade e respeito, perguntei-lhe se havia encontrado a professora. Sua resposta foi sincera: “não há professores nesse lugar”. Era uma segunda-feira, 28 de abril de 1997, dia do meu aniversário. No dia 2 de maio soube da morte de Paulo Freire. E era também, ao mesmo tempo, dia 7 de janeiro de 2009, dia em que entendi o que Paulo me dizia.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

O homem, a guerra

Foi uma cachoeira de lágrimas que abruptamente desceu de meus olhos ao escutar a voz doce e trêmula do outro lado da linha, era minha irmã, estava sim viva. Nenhuma palavra para sinalizar a conexão foi preciso, alô, olá, quem fala?, sim, simplesmente a respiração dela me fez abrir as comportas de minha represa de emoções. Minha irmã e meus sobrinhos vivem hoje na Palestina, vim eu somente acá fugir do cotidiano assustador das Enola Gays que os aviões jorram. A qualquer um pode parecer contraditório que o piloto americano tenha dado o nome de sua mãe à maior arma de destruição de seres humanos que um (des)humano fez, mas a mim não me faz coçar os cabelos. O que quase ninguém sabe, é que ao tomar conhecimento das milhões de vítimas esmagadas nas cidades japonesas na Segunda Guerra Mundial pela Rosa de Hiroshima, Harry Truman entusiasticamente disse às pessoas a sua volta que era aquele o maior evento da história. Do outro lado do mundo, consigo ver o sorriso dos pilotos isralitas ao assassinar bebês-terroristas. Não por acaso as crianças são as mais alvejadas; em uma lenda criada entre os judeus, os bebês muçulmanos devem ser exterminados, pois são de raça inferior, por isso as chamam de terroristas, entendo a preocupação. Depois de perguntar como estava minha família, minha irmã me pôs em diálogo com meu afilhado, seu filho mais novo. Contou-me que foi visitar seu amigo de futebol, de pelada de rua como chamam aqui; cortaram-lhe os dois pés. Lembrou-me dos dribles que fazia, dos malabarismos que fazia, das risadas que fazia aos outros, das brincadeiras que fazia, e por último me contou como se fazia triste ao chão de um hospital. O silêncio que Elona deve ter provocado no Japão se impôs à linha telefônica. Minha garganta apertou-se, sufocando minhas cordas vocais, minhas pernas tremularam. Sem despedida realocou sua mãe à minha conferência. Disse-me que o seu filho mais velho tem dito a todos dentro de casa que irá se sacrificar à causa palestina, colocar sua alma para vingar as de seus amigos. Disse-me que não conseguia aplacar a idéia, porque ela mesma não sabe mais o que fazer. Disse, eu, que viesse para cá, mas sabia eu que mesmo se sua resposta fosse positiva, a possibilidade disso acontecer era mínimo. Poucos sabem que a decisão de partir não é fácil, a decisão de deixar seu povo, seus amigos, sua vida, de tornar-se sonâmbulo em campos de refugiados não é a mais simples das decisões. Repousei o fone no orelhão, desligando o som da minha morada há vários dias dali. Era horário de repouso. Voltei à máquina de impressão sem alma. Apenas uma frase da manchete do jornal me ligava ali: “Lições anticrise”. Amputar-me a alma seria esta uma das lições? Como duas imagens sobrepostas, essa frase me trazia novamente ao diálogo com a Palestina. A crise, a Palestina. A crise, a bomba. A crise, a morte. A crise, Elona Gay. A crise, o maior evento da história. A crise, a guerra. O homem, a guerra.