terça-feira, 28 de outubro de 2008

A deposição do Soberano

Era meu último dia como professor, era meu último café da manhã corrido, meu último engarrafamento, era meu último bom-dia ao porteiro, era meu último dia senhor de mim, era minha entrega de faixa; a partir de agora seria o trabalho um ócio e ócio um trabalho. No instante em que o relógio me despertasse, seria o último lapso de pesadelo ao mesmo tempo em que seria o primeiro dia de sonho. Após oitocentos anos de atividade mal-remunerada de professorado, eu entraria para o clube de damas, entraria para a fila da morte, com a senha, mas sem saber quando seria chamado. Contudo, era ainda preciso completar a última volta, aquela que os corredores parecem carregar um pedregulho em suas mãos até que este caia no fim da jornada. O meu, segurei-o, busquei o último fôlego e levantei-o e em frente fui, corcunda.
Ao chegar, todos me felicitavam pela vindoura vida de controlador de controle-remoto, mas algo me parecia tão estranho, como se aquelas pessoas estivessem felizes não com meu descanso de retirado, e sim com a possibilidade de nunca mais ter que me sorrir aquele sorriso de apresentador de televisão; não quis acreditar, e continuei com meu cavalo ou sendo cavalo. Não demorou muito aquele apito paroquial fazer baixar em mim a figura do poder, disciplinado, rijo, que ardilosamente fiz representar durante toda minha vida profissional. Passei a linha que separa minha corte de meu trono, caminhei roboticamente em sua direção e me sentei. Uma passadela pela classe me fez parar naqueles que eu sempre busquei calar, reprimir, concertar, consertar, ensinar. Divinais. O silêncio coroava aquele meu tranqüilo dia, aquele instante em que a sombra ganha a lua.
Não me lembro do que falava, quando da primeira vez em todo meu magisterium um aluno levantou a voz sem ser solicitado. Pela primeira vez naquele cárcere alguém ousou em me dirigir a palavra sem que eu estivesse preparado, impostado, sustentado, seguro, pela primeira vez sem que eu não desse a minha permissão, a única. Falou, o cativo, do belo dia que estava lá fora. Naquela hora, não distingui se havia ou não ironia na entonação, se era realmente um belo dia ou se o era por ser o meu último dia. Esta questão fez-me pairar, a voar, olhando além das grades que encarceravam-nos. Não era sol de meio dia, nem sol de três quartos de dia, não era calor nem frio, era sim um belo dia, e comecei a concordar com o interlocutor... como o dia é bonito.
A conversação durou toda a aula, todo o tempo que ali se fez infinito, de risos, de prazeres, de esperanças e de criatividade. Ao término, despedi-me. Neste momento percebi como aqueles olhos todos eram parecidos com os meus; durante minha vida toda fiz daqueles olhos inimigos de campo, e percebi quanto sofri e produzi sofrimento.
Foi no último dia, no último minuto que eu estava em todos eles, e que não deixei eles estarem em mim. Uma pena saber que irei esquecer-lhes ao despojar-me de meu castelo.

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