quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Via Crusis ao Vivo

Há certos momentos em que minha vista embaça, ao longe sereneia-se, descolore fazendo da paisagem matizes cinzentos, como dias nublados, e foi nesse momento que percebi como estamos cercados de cimento, nas calçadas, ruas, prédios, casas, nada mais natureza do que o imenso arcabouço que construímos em cima da terra. Foi nesse instante, não sei se por variação de temperatura, interna ou externa, que me lembrei do que fazia eu ali, no meio da ensurdecedora calçada, de riscos paralelos e transversais, naquele dia ensolarado, refrescante só quando se perpassa estabelecimentos de lojistas – lá não há dia nem noite, nem chuva nem sol, só “há(r) condicionado”. Passo a passo, quase como uma progressão matemática, fazendo-me mecânico naquele mundo de aço, vou em direção ao sítio arqueológico esquecido dentre as fumaças febris, degraus e buracos no meu caminho. Por incrível que pareça, não sou eu um profissional da área, não me graduei, pós-graduei, após-pós-graduei nem cheguei ao ponto máximo nesta carreira, o trono reluzente, semi-espelhado, cujo cedro me lembra uma cordinha, que quando puxada leva todos os nossos pensamentos a um lugar-comum, nem sei se esta é a minha masoquia, vou por curiosidade apenas. Por ser longe daquilo que chamam civilization ou american way of life, minhas pernas por desleixo raspam-se e ao fazer isto uma pequena dor faz minha caminhada mais vagarosa e abaianada. Durante o percurso vários pensamentos me vem à frente como nos filmes globais, sob uma pequena penumbra, Não vale a pena, Você não vai conseguir, entretanto, como renovado pelo espírito olímpico, ou pelas músicas que tocam nosso coração a cada vitória, ou pelos exemplos de persistência que aparecem televisionados cotidianamente, O gari que achou 2 milhões de reais e devolveu-o, O ladrão que se arrependeu de ter roubado um carro, O artista de novela que doou sua cueca para ser leiloada, O mendigo que enriqueceu quando investiu sua esmola na bolsa de valores, continuo esse minha sina tortuosa, via crusis ao vivo, a cada flexionada dos músculos inferiores, num movimento de repouso e aceleração, maquinalmente plagiada pela natureza de nossas invenções pós-modernas.
Viro à esquerda, lá avisto Biblioteca, entro e ninguém à vista. O ambiente empoeirado e escuro faz-me temer por minha vida, a qualquer momento um serial-killer-obeso-branco-armado-americano pode se vingar de mim por ter lhe oferecido batatas. Era só um pequeno medo, passageiro, sabe como a vida anda violenta por esses lados, não se pode mais confiar em americanos obesos, por mais que se more na América do Sul. As estantes, agora as olho, estão vazias, minto, digo, possuem apenas um livro. Caminho até o sobrevivente, seu aspecto não é noviço, poderia ter sido o sobrevivente de uma chacina, ou de um assalto, sabe-se lá, as pessoas dão muito valor aos livros, cada palavra tem peso-ouro. Posso ver, é um dicionário inglês-português, penso, Porquê será que é este o único livro aqui exposto, e ao me virar para trás encontro uma máquina de escrever televisionada, mais conhecida como computador, sento defronte, ligo-o, a tela balbucia um ruído, e aparece: ERROR.

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