sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Num dia como esse

Foi num dia de ação de graças, no dia de fazer a diferença, no dia das crianças com esperança, no dia do combate à fome ou foi no dia em que as vovós espíritas vinham nos dar sopa que nos conhecemos. Era meu primeiro dia ali, vinha distante, tínhamos em comum, eu e meliante, não termos passado nem futuro, sermos escravos do presente. Se a esmola tivesse sido gorda, conseguíamos cola e um pouco de comida até. Com a cola poderíamos ficar mais uns dias sem comer até que uma das campanhas fraternais nos fizesse visita, sempre às escondidas, receando serem descobertos dando alimento a pessoas com fome. Meliante nunca me contara sua história, dizia não ter, mas eu já sabia qual era, todos nós aqui sabemos o que nos leva a ter que fazer do cimento leito, nossas costelas são tão acostumadas que mendigo quando morre não consegue acostumar-se à nova morada. Quando este tiver, se não for deixado ao relento. O apelido, meliante, vem da rua mesmo, das vezes que roubava relógios no sinal. Cansara-se de tanto malabarizar no semáforo que confundiu um dia o verde com o vermelho e foi atropelado por um carro, pequenos percalços da vida globalizante que temos de enfrentar cotidianamente. Acabamos formando uma família, a que nunca tivemos, revezando a cola na hora de fome, a ponta calçada na hora do sono e a vigia para que não fossemos, junto com nossos amigos, pisoteados por uma das pessoas. Como elemento nos dizia, um dos nossos amigos, não ouvimos desculpa da sociedade nem mesmo quando tropeçam nas nossas patas, diferente tratamento deve ter as pernas e mãos de seus animais domesticados. Elemento gostava de conversar conosco, contava de suas aventuras, de suas viagens, de suas loucuras, de suas vidas sem vida no xadrez, jogo de pique entre a polícia e ele. Tem sempre um baralho à mão, caso tivesse que voltar à vida cigana. Um dia como esses, de frio, fomos nós todos cantar em um praça da cidade, inventamos nossas datas de nascimento, marcamos no calendário imaginário de dias sempre de mesmo número, que era aquele momento o que tinha há muitos anos começado nosso ciclo ao sermos defecados – acreditamos realmente que éramos o aborto confundido com estrume. Naquele dia, havíamos combinado, toda a esmola seria para comprar bebida, seria uma festa de aniversário comunitária. Elemento e meliante estavam felizes, mas as pessoas de luz, como chamamos os moradores de apartamento, não gostaram de nos ver sorrir. A polícia chegou em dez minutos e nem parou. Do carro mesmo, a metralhadora gritou em uníssono com o lamento dos dois. Nosso grupo se dispersou, e eu vim parar aqui. Agradeço muito por ter me dado espaço nesse seu co-chão. Agora é a sua vez, me conte como veio parar aqui.

Um comentário:

Unknown disse...

Meu amor, li este seu escrito, como venho lendo todos os anteriores, mas não consigo reunir palavras para comentar, prefiro refletir comigo mesma!
Parabéns pela forma como escreve, sempre se preocupando em mostrar o que acontece com o nosso país, nosso mundo.
Te amoooooo demais!