quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

O encontro com Paulo

Agora lembro-me que foi a última conversa que tive com Paulo. Encontrei-o andando pela Universidade Federal Fluminense, em Niterói, vagaroso andar, pensativo. Embora cheia de estudantes, fui somente eu que o reconheci. Após a apresentação inicial, caminhávamos para o Bloco N, onde eu iria entregar minha monografia de final de curso e ele encontraria uma velha conhecida. Sua intenção era chamar uma professora, sua antiga aluna, para trabalhar com ele nos EUA. Dizia-me que tinha sido convidado pela Harvard para ministrar um curso; diante de minha surpresa, ele se adiantou e disse que talvez eles, os estadunidenses, precisassem de alguns intelectuais mais críticos para enfeitar o bolo da sua “democracia” – nesta palavra coloco aspas pois o gesto de Paulo foi o de mexer os dois dedos, indicador e médio, das duas mãos para cima e para baixo, como se estivesse raspando algo no ar, sinal este de contradição numa conversação. Disse-lhe que gostava muito de saber que não estiva cansado de sua luta política, o que fê-lo loquazmente abanar a cabeça em negativo. Não é porque estou mais velho que deixei de amar as pessoas, afirmou-me. E assim íamos do bandeijão até o Bloco N, onde se localizava o departamento de história daquela universidade. Ao chegarmos no prédio alvo, descobrimos que o elevador estava descansando, devido à sua avançada idade, e por isso deveríamos subir cinco andares. Esse é o Brasil, exclamei aos céus na esperança de impressionar meu interlocutor. Esse Brasil somos nós, Paulo disse por entre sua barba branca, na doçura que não me fez perceber que me corrigia, como se aquela frase dissesse que não devia eu colocar a culpa em uma coisa abstrata chamada Brasil, senão em nós que fazemos parte do coletivo deste país. São poucas pessoas que tem a capacidade de falar muito em uma pequena frase. Subimos a passos de caramujo, levando nossas casas às costas. Ao quinto andar, finalmente, nos separamos justamente quando me falava indignadamente da morte do índio Galdino. A última frase foi uma sentença: “não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, torná-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor”. Queria dizer-lhe que eu concordava imensamente com o que ele dizia, mas fomos separados pela bifurcação do corredor. Eu parei para entregar minha pequena monografia de final de curso, ele seguiu seu curso à procura da professora. O alívio daqueles dias me subiu à cabeça quando deixei aquele trabalho tão difícil de escrever. Escrevi sobre o comércio de escravos em Vassouras, com o mesmo tema tinha deixado um projeto na pós-graduação. Foram dias de viagem até Vassouras, uma hora de carro de minha cidade, mais as horas codificando os números da venda de escravos naquela região no século XIX. Acreditava eu ter uma dívida com esta cidade, que anos atrás tinha me acolhido tão bem. Não era nada inovador o que escrevi, nada que merecia mais do que a atenção devida. Ao sair do departamento em direção à escada, pois o elevador continuava sua ressaca, por um acaso, reencontrei Paulo em direção oposta e fui ter com ele. Decidimos então descer pela segunda escada, pela simples questão de ele estar mais perto desta do que daquela que havíamos subido. Empurramos a porta que dava acesso à escada quando nos demos com uma pilha de lixo. Pensei que fosse a cesta de lixo que havia caído no chão por algum descuido. Para minha surpresa não era. Naquele lixo estava, misturado com copos plásticos e restos de café entre outros cheiros que não pude identificar, o projeto de pesquisa que havia entregado à pós-graduação de história. Fiquei sem voz. Meus olhos não contiveram a sensação de ser tratado como resto humano e alagou-se. Tirei uma foto que pretendia enviar à coordenadora para cobrar-lhe resposta. Não enviei. Descemos, eu e Paulo, até chegarmos sem nenhuma palavra à barreira de entrada da universidade. Os seguranças deixaram-nos sair e nesse momento já respirava melhor. Foi quando Paulo me disse que seguiria direto para a rodoviária, necessitava arrumar as malas em São Paulo e partir. Por curiosidade e respeito, perguntei-lhe se havia encontrado a professora. Sua resposta foi sincera: “não há professores nesse lugar”. Era uma segunda-feira, 28 de abril de 1997, dia do meu aniversário. No dia 2 de maio soube da morte de Paulo Freire. E era também, ao mesmo tempo, dia 7 de janeiro de 2009, dia em que entendi o que Paulo me dizia.

Um comentário:

Unknown disse...

FÁBIO, ESTE FOI UM DE SEUS ESCRITOS MAIS FODAAAA! CORA ME ENGASGUEI, COMO VC CONSEGUE REUNIR TAIS ACONTECIMENTOS COM UM PERSONAGEM TÃO ILUSTRE COMO PAULO FREIRE! VC É MEU ORGULHO, E DESEJO DO FUNDO DE MINHA ALMA, PULMÃO, CORAÇÃO E ETC, QUEM ALGUÉM NESTE IMENSO MUNDO LHE DE A CHANCE DE LECIONAR... ELES NÃO SABEM O QUE ESTÃO PERDENDO!
TE AMO DEMAIS...