quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Não nasci, fui refugiado

Me pareço cada vez mais com mercador de tempos, troco com sol a responsabilidade de vigiar a lua. Nunca foi de grande importância para mim esse jogo de esconde-esconde com as luzes solares, não sou planta. É sempre esquisito estar acordado quando todos estão a sonhar, e a sonhar quando os outros estão a chorar a vida. Talvez tenha sido o meu vir ao mundo que causou toda esta confusão. Os médicos ficaram abismos quando descobriram que não queria nascer. Já tinha encontrado morada bem confortável entre a bexiga e os rins de minha mãe, por isso meu choro inaugural foi de saudade, sem lenço, silêncio. Por mais que me batessem, e sentia cada palmada como uma relhada de chicote escravo, era a lembrança de um mundo mais maleável, mundo astronauta desgravitacional, mundo dançarino, que deixou sua primeira impressão em minha mente, e a primeira impressão é a que fica. Ficou, tanto que procuro a sombra à luz. Não nasci, fui refugiado, sem-teto de guerra monóloga com as autoridades sanitárias. As lágrimas se evaporavam de mim, sulcaram tantos solos, vindos de cachoeiras de cloreto de sódio precipitando ao chão, que meus olhos se juntaram para consolo irmão. 

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